Por que Romanos 9 não avaliza a predestinação incondicional (2)


Começarei esta análise de Romanos 9 pelo versículo 16, haja vista sugerir que não existe o livre-arbítrio: “Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadesse”. E, para um bom calvinista, esse versículo é o suficiente para refutar a idéia da participação da livre-vontade humana no que tange à salvação.

Mas é preciso observar que o apóstolo Paulo não se refere ao meio pelo qual se recebe a salvação, e sim à fonte da salvação. A ênfase de que a salvação não depende do que quer, mas do compassivo Deus, não deve ser usada fora de contexto, com a finalidade de descartar a livre-vontade humana, necessária para o recebimento da salvação, segundo a Bíblia (Jo 1.12; 3.16; Rm 10.9,10; Ef 2.8-10).

Se tomarmos como base outros textos neotestamentários, veremos que, conquanto a graça de Deus seja a fonte da salvação, o ser humano pode rejeitar essa dádiva divina (2 Pe 3.9; At 7.51; Rm 9.22). Por outro lado, segundo os predestinalistas, os versículos 21 e 22 do capítulo em análise desferem um golpe mortal contra o livre-arbítrio: “Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou os vasos da ira, preparados para perdição”.

OS VASOS DA IRA

Bem, quando a Palavra de Deus menciona a analogia dos vasos, a ênfase é para o fato de que, de acordo com a nossa resposta moral a Deus (cf. 2 Tm 2.20,21), o vaso poderá ser moldado ou desfeito nas mãos do Oleiro, como foi o caso de Israel (Os 8.8, ARC). Quem lê atentamente Jeremias 18 sabe que o Senhor não ignora o livre-arbítrio. Ele mesmo disse, depois de apresentar a Jeremias uma analogia sobre um vaso que se quebrou na mão do oleiro: “Se a tal nação, contra a qual falar, se converter da sua maldade, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe” (v.8).

À luz do contexto geral da Bíblia, vasos da ira são os pecadores que recebem a ira de Deus após terem permanecido no pecado. Da mesma forma, os vasos de misericórdia são os pecadores que recebem a misericórdia de Deus (Rm 9.23), ao crerem no evangelho de Cristo, que é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16). Os vasos da ira são objetos da ira divina porque se recusam a se arrepender. Daí o fato de Deus suportá-los com longanimidade (Rm 9.22), isto é, esperar pacientemente por seu arrependimento (2 Pe 3.9).

É claro que o argumento acima não convence uma mente predestinalista. Por quê? Porque, como está escrito em Romanos 9.22 que os tais vasos da ira foram preparados para a destruição (ou perdição), os calvinistas continuarão acreditando que a tal preparação para a perdição se deu antes da fundação do mundo. E, para advogar essa idéia, valem-se do próprio capítulo em apreço, pelo qual se afirma, segundo eles, que Jacó e Esaú já nasceram preparados para o que fariam no mundo. Será?

A ELEIÇÃO DE JACÓ E ESAÚ

Os versículos 11 a 13 de Romanos 9 parecem mesmo apoiar o fatalismo calvinista, pelo qual se propaga a eleição arbitrária de indivíduos para salvação e perdição, antes da fundação do mundo. Afinal, o texto diz que Deus amou Jacó e aborreceu (odiou, rejeitou) Esaú. Parece mesmo não haver dúvidas de que o Senhor somente ama os eleitos, além de odiar os não-eleitos. Mas, como eu já disse, não podemos desprezar o contexto imediato, tampouco a analogia geral da Bíblia.

Creio que alguns predestinalistas desdenharão deste artigo, dizendo: “Pobre arminiano” (leiam a primeira parte desta série). Mas não tenho dúvidas do quanto o texto em apreço tem sofrido na mão do calvinismo extremado. Primeiro, porque o apóstolo Paulo não está falando de indivíduos! Jacó (Israel) e Esaú (Edom) representam duas nações! Basta lermos com atenção Gênesis 25.23 para chegarmos a essa conclusão: “E o Senhor lhe disse: Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o maior servirá ao menor”.

Não há, pois, apoio a uma eleição individual, e sim a uma eleição de povos e nações: Israel e Edom. O que houve antes de os gêmeos nascerem foi uma eleição corporativa, e não individual. A passagem em análise não diz que Deus odiou a pessoa de Esaú antes que ela tivesse nascido, nem que Ele amou a pessoa de Jacó antes de este ter vindo ao mundo! Prova disso é que o apóstolo Paulo não citou Gênesis 25.23, diretamente, e sim Malaquias 1.2,3, que alude aos povos israelita e edomita.

Segue-se que a frase “aborreci Esaú” não é uma menção à rejeição do homem Esaú, e sim à rejeição do povo edomita, em razão de seus terríveis pecados, como se lê em Números 20 e Obadias. Mas isso não significa que todos os edomitas estejam, de antemão, condenados em razão de pertecerem à nação de Edom (cf. Am 9.12). A Palavra de Deus afirma que os indivíduos de cada nação podem ser salvos (Ap 7.9). Não era Rute uma moabita, pertencente a um povo rejeitado por Deus?

É um erro, por conseguinte, acreditar que o texto de Romanos 9 alude à eleição de indivíduos. Paulo se refere à eleição do povo de Israel. E, por isso, no capítulo seguinte está escrito: “Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para a sua salvação” (v.1). O que a Palavra de Deus ensina em Romanos (toda a epístola) é o que se vê em toda a Bíblia. Deus elegeu um povo como nação sacerdotal, Israel (Êx 19.5,6), mas cada indivíduo tem de aceitar a graça de Deus pela fé, a fim de que seja salvo (Rm 11.20). E isso também se aplica à Igreja, geração eleita, sacerdócio real, nação santa e povo adquirido (1 Pe 2.9,10).

Outrossim, o ódio de Deus a Esaú (Edom) precisa ser entendido de acordo com o sentido original da palavra usada para “odiei” (ou “rejeitei”). No hebraico, significa “amar menos” e é o mesmo termo aplicado ao sentimento de Jacó por Léia, inferior ao que nutria por Raquel. Ele amava muito esta e “desprezava” aquela (Gn 29.30,31). O sentimento de Jacó por Léia não era de ódio, como que querendo vê-la sofrer. Na verdade, ele até teve filhos com ela! Mas Raquel era a sua preferida.

No Novo Testamento o aludido hebraísmo também ocorre em Lucas 14.26, texto pelo qual aprendemos que, para seguirmos ao Senhor Jesus, amando-o acima de tudo, devemos amar menos (ou “aborrecer”) a nossa família (Mt 10.37).

O ENDURECIMENTO DE FARAÓ

Nos versículos 14 e 15 do capítulo em apreço está escrito: “Que diremos, pois? Que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma! Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia”. A citação de Paulo refere-se ao endurecimento de Faraó (Êx 7.3,4). Mas é importante enfatizar que não foi Deus quem primeiro endureceu o coração de Faraó (Êx 7.13,14,22). Este se obstinou em seu coração (Êx 8.15), o qual permaneceu endurecido e obstinado, mesmo ante as pragas enviadas por Deus (Êx 8.19,32; 9.7,34,35).

Não foi o Senhor quem fez questão de endurecer Faraó, anulando-lhe a livre-vontade. Ele apenas confirmou o que o próprio Faraó desejava fazer (Êx 9.12; 10.1,20,27). Isso se conforma ao que está escrito em Romanos 1.21 acerca da depravação dos gentios: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu”. Mais adiante, em razão desse endurecimento, está escrito: “Pelo que Deus os abandonou às paixões infames... E, como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm” (vv.26-28).

Voltando ao endurecimento do coração de Faraó, fica claro pelo estudo contextual das Escrituras que o tal endurecimento
, em definitivo, se deu em razão de ele ter se firmado cada vez mais em seu pecado, a cada praga enviada ao Egito. É como está escrito em Provérbios 29.1: “O homem que muitas vezes repreendido endurece a cerviz, será quebrantado de repente sem que haja cura”. Não foi, portanto, Deus quem endureceu Faraó, pois este escolheu agir assim, mesmo ante as repreensões do Senhor.

Ademais, o termo hebraico usado para “endurecer” denota “fortalecer”, isto é, Deus apenas “fortaleceu” o desejo que estava no coração de Faraó. Não foi Ele quem desejou que Faraó fosse obstinado, mas apenas o abandonou às suas paixões infames e o entregou a um sentimento perverso, que já havia em seu coração (Êx 8.15), posto que ele não se importou em ter conhecimento de Deus (Jo 12.37-50). No mesmo livro de Romanos (contexto imediato), o apóstolo Paulo faz menção a essa dureza de coração ocasionada pelo próprio pecador, e não por Deus: “... segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus” (2.5).

Portanto, o texto de Romanos 9 de maneira alguma avaliza a predestinação incondicional de certas pessoas ao Inferno eterno, à parte do próprio livre-arbítrio delas. E isso também não significa que a salvação seja mediante obras. É claro que o ser humano, por si mesmo, nada pode fazer para salvar-se. Mas é inegável o fato de o Senhor ter dotado o homem de intelecto, sentimento e vontade, a fim de que ele receba ou não, pelo livre-arbítrio, a salvação. Afinal, “Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação...?” (Hb 2.3).

(continua...)

Ciro Sanches Zibordi

Comentários

Olá pastor Ciro!

Escrevi recentemente algo a respeito de: Predestinados ou destinados à perdição? Se possível dê uma passada por lá para ler.

1º parte: http://pericopecc.blogspot.com/2008/09/destinados-ou-predestinados-perdio-rm-1.html

2º Parte:
http://pericopecc.blogspot.com/2008/09/predestinao-por-parte-de-deus-para.html

Vitor Hugo
Caro Vitor Hugo,

Agradeço-lhe pelas sugestões. Assim que possível lerei os seus artigos.

Em Cristo,

CSZ
Anchieta Campos disse…
Prezado irmão e amigo Ciro, a paz do Senhor.

Mais um excelente artigo soteriológico para a nossa coleção teológica digital.

Interessante que no início da minha fé, mesmo eu tendo me convertido na Assembléia de Deus, eu era um um defensor ativo da predestinação incondicional fatalista do homem individual. Quem diria!? risos.

Hoje, mais do que nunca, estou firmado na doutrina bíblica do livre-arbítrio, sendo um defensor em potencial desta verdade bíblica.

Tomo a liberdade de deixar o link da minha última postagem tratando do tema, a qual remete para as demais que já escrevi:

http://anchietacampos.blogspot.com/2008/10/as-ovelhas-do-bom-pastor-e-predestinao.html

Forte abraço e que Deus o abençoe e use cada vez na defesa da Palavra de Deus. Amém.

Anchieta Campos
Anônimo disse…
Paz do senhor pastor Ciro, tudo bem.
Pastor tenho uma duvida.
por que existe pastores e pregadores da palavra de Deus que dizem q são DOUTORES EM DIVINDADE, isso e correto?
Rinaldo Santana disse…
Pastor Ciro, Graça e paz,
Quero aqui enfatizar o seguinte: Em Mc16.15 - Está escrito , Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura quem crer(aceitar, obedecer, confiar) e for batizado será(futuro presente do indicativo) salvo (condicional "mas aquele que permanecer até o fim será salvo Mt. 24.13" se fiel até a morte e darte-ei a coroa da vida Ap 2.10)

Aos que predestinou a estes também chamou e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou." (Rm 8.30)
Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende daquele que quer, nem do que se esforça, mas de Deus, que compadece." (Rm 9.15-16).
"Não tem o oleiro poder sobre o barro para, da mesma massa, fazer um vaso para honra e outro para desonra?"

"Calvino através de sua ignorancia, defendeu a Teoria da predestinação".

A vontade de Deus é que "todos" os homens sejam salvos, porque Cristo morreu por todos os homens.

1 Tm 2:4 - "O qual deseja que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade".

Tt 2:11 - "Pois a graça de Deus se manifestou trazendo salvação a todos os homens"

At 2:21 - "E todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo"

Rm 5:18 - "Assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens, para condenação, assim também por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para justificação e vida".

2 Pe 3:9 - "O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a tem por tardia. Ele é longânimo para convosco, não querendo que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se".

Jo 3:16 - "Porque Deus amou o mundo de tal maneira..."

Mt 25:41 - "Então o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: "apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos".



Em Cristo
José Rinaldo de santana
wwww.rinaldoeapalavra.blogspot.com
Anônimo disse…
A paz do Senhor Jesus!

Pr.Ciro que Deus o ilunime cada vez mais,pois esse artigo é uma luz no tocante a esse tema tão polêmico no meio protestante.

Como disse é uma luz e ajudou-me bastante no entendimento da relação entre o livre arbítrio e a soberania de Deus.

na paz,
Gernandes
Anônimo disse…
Pastor Ciro,

A paz do SENHOR.

Excelente analise exegética o senhor fez agora. Eu já tinha visto o Dave Hunt comentar Rm 9 , e ele tinha falado,assim como o senhor mostrou, que Esaú e Jacó nesta passagem estava se referindo as nações. Porem acredito que esta analise feita agora, foi mais profunda.


Em Cristo,

Joabe
Anônimo disse…
glória a Deus por esse estudo
me esclareceu muito!!!!
tinha lido romanos 9 e estava em duvida aqui... até achar o blog =)
que Deus abençoe sua vida cada dia mais!!!!
Frank Brito disse…
O principal problema dos defensores do livre-arbítrio é confundir "escolha" com "livre-arbítrio". As duas palavras não são sinônimos.

Tanto arminianos quanto predestinacionistas creem que o homem faz escolhas. A diferença é que os defensores do livre-arbítrio acham que as vontades e escolhas podem existir de forma não-causada. Em última instância, isso significaria que pode existir coisas no universo que passam a existir ex nihilo (do nada) sem que Deus seja a sua causa primária.

Os homens fazem escolhas sim. Mas essas escolhas não são "livres", mas determinadas: pela personalidade, pelas características, pelo histórico de vida e no âmbito moral/espiritual pela natureza (caída ou regenerada).

Deus é o Criador e por isso é a causa primária de tudo o que acontece. Isso não anula a existência de escolhas, mas estabelece Deus como sendo o predestinador de tudo o que acontece, ainda que aconteçam por meio de causas secundárias que movem a vontade humana.
Anônimo disse…
É verdade que o homem possui o livre arbítrio. Mas não é menos verdade que Deus possui a presciência, a uniciência e a unipotência. Logo, é evidente que Ele conhece, de antemão, aqueles que lhe pertencem (os que creem) e, também, aqueles que não haverão de crer, por não serem destinados à salvação, a qual é de acordo com a eleição e predestinação (de Deus).

Alguns poderiam refutar com a pala ecrita em 1 Timóteo 2:4 que diz que é a vontade de Deus que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.

Só tem um detalhe: diariamente milhares de pesoas morrem no mundo perdidas, sem salvação...Isto não quer dizer que a palavra de Deus neste ponto não está se cumprindo, mas que a expressão "todos os homens " deve ser interpretada em relação aos que Deus Elegeu e predestinou.

A razão disso é simples: A fé não é de todos. 2 Tessanolissenses 3:2

Jesus é Senhor!


João Alexandre
Alexandre disse…
Quando se entende a predestinação como ela realmente é, se louva mais a DEUS!

"Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá."
Ezequiel 18:4
Unknown disse…
ótimo ! Perfeito , claro que os soberbos calvinistas não dão o braço a torcer nem com o melhor argumento...Mas vc explicou tudo muito bem.
Unknown disse…
Excelente texto
Leonardo disse…
E jessica minha querida, obrigado por me chamar de soberbo. Leia Romanos 14. Mesmo se " sou mais fraco em fé." ore, não julgue.